João do Caixão, este é o nome do nosso personagem. Dona Lenita, sua esposa, reparou que João do Caixão andava com uma mania nova, era mais uma das muitas que tinha, mas essa era realmente nova. E tudo começou dias depois de ter sido anunciada a Pandemia do coronavírus.
João do Caixão, depois que o coronavírus se espalhou pela cidade, chegava em casa um pouco mais tarde e muito extenuado, com um cansaço que saltava do seu corpo e do seu rosto triste. Ah, João, eu ainda não o apresentei, era coveiro do cemitério municipal de Campo dos Patriotas, cidade media, de pouco mais de cinquenta mil almas. Em tempo de COVID-19, as mortes e os enterros, por ali, haviam triplicado. Passavam de dúzias diariamente.
Seu João, chegava do cemitério, entrava em casa, tirava um saco de pequenas pedras do bolso, corria para o banho. Dona Lenita não entendia para que servia aquele saco de pedrinhas, mas nem queria perguntar, pois de morto sempre quis distância.
O banheiro ficava no quintal e João gostava de tomar banho de cuia, esfregando o corpo com uma esponja de sabugueiro e sabão grosso. Aquilo realmente fazia efeito. Tirava todo o cheiro de defunto que era como se fosse a graxa do mecânico, a tinta do pintor ou o cheiro de mofo dos escritórios, entranhava no corpo, tal qual o odor terrível dos presos, depois de um tempo de cadeia.
Depois do banho, era como se a vida voltasse aquele corpo castigado pelo tempo. Seu João vestia uma roupa limpa, que Dona Lenita, cuidadosamente, separava e já deixava na porta da cozinha, ali mesmo, ele se trocava, sob a fraca luz que vinha de dentro da casa, deixando o macacão surrado, com o escudo municipal de Campo dos Patriotas, no jirau para ser fervido e lavado.
Entrava em casa, trocava um dedo de prosa com a esposa, ligava o rádio, já com o saco de pequenas pedras na mão, para ouvir o boletim que o Secretário Municipal de Saúde divulgava todos os dias, as 18horas, com os números de mortos por COVID-19, esta praga que tem feito o trabalho de Seu João mais estafante ainda.
Seu João anotava o número divulgado e sentava-se em um cadeira, abria o saco com as pequenas pedras e conferia pedra por pedra. Com o tempo, Dona Lenita deduziu que aquilo tinha a ver com os sepultamentos do dia. Mas Seu João do Caixão nunca lhe disse nada. Na verdade, Seu João não gostava de comentar em casa sobre o seu trabalho, não queria entristecer o seu lar com assuntos fúnebres.
Após conferir as pedras com as estáticas oficias, Seu João, se ajoelhava em frente a um quadro com a imagem de Nosso Senhor Jesus Cristo e começava a reza baixinho. Cada pai nosso era uma pedra que saia do saco, até que o saco estivesse vazio, quando Seu João retornava todas as pedras e guardava para leva-lo consigo no outro dia ao trabalho.
O Prefeito de Campo dos Patriotas, sujeito polêmico, usava as palavras da Bíblia em vão, ex-inspetor da Guarda Municipal, que fez sua popularidade reparando os casais de namorados, nos escurinhos das praças da cidade, inconformado com o número de mortos e vítimas, já havia trocado muitas vezes de secretário de saúde, até que nomeou um outro inspetor da Guarda Municipal de sua confiança, que nem médico, nem enfermeiro era. Um colega do tempo da missão de pastorar o namoro alheio.
Nesta missão de flagrar namoro, é bom você saber, um certo dia o Prefeito, que dizia fazer aquilo em nome da família, acabou flagrando um de seus rebentos, dando-se a conhecer com outros meninos do bairro, em uma terreno baldio, foi um escândalo.
O Prefeito, na época inspetor Bacurau, apelido que ganhou por causa da lanterna que usava como arma para focar bem nas partes intimas das suas vítimas, endureceu ainda mais seus discursos pela moral e pelos bons costumes. Tudo para ele era homossexualidade e atentava contra as famílias.
Os mortos que chegavam ao cemitério de Campo dos Patriotas eram cada vez em número maior, sempre sem as cerimônias de despedidas para atender o protocolo. O saco de pedrinhas de Seu João voltavam para casa cada vez mais pesados. O nosso Coveiro ficava muito mais tempo ajoelhado, pagando sua promessa.
Até que um dia, quando seu João ligou o rádio para escutar o aviso dado pelo Secretário com o número dos mortos, foi surpreendido com a comunicação que o horário dos avisos mudara para as 10 da noite. Por que essa mudança? Meu Deus, cansado do dia de trabalho, como ficar acordado para cumprir com seu ritual? Se perguntou, assustado, Seu João do Caixão.
Seu João não apoiava o Prefeito Bacurau, achava um enrolão autoritário, agora tinha ido longe de mais. Já pensou esconder os números das pessoas que haviam morrido? Será que era para atrapalhar a vida de Seu João?
O ritual de todas as noites, era uma promessa que Seu João havia feito de rezar um pai nossa para cada pessoa enterrada, morta pelo vírus, sem qualquer cerimônia, sem as despedidas familiares, sem os discursos.
Seu João adorava os discursos de despedida aos mortos. Seus repertório de palavras se enriqueciam com os termos novos a cada enterro. Cada morto por COVID-19 era uma pedrinha que ele colocava dentro do saco. A noite, quando os números oficiais eram divulgados, Seu João confirmava com as pedrinhas e sempre batia, nunca apresentou qualquer diferença.
Para Seu João do Caixão seria uma grande falta deixar de rezar um só pai nosso. Já pensou esquecer de um morto? Quebrar uma promessa?
Tinha medo de que o morto pudesse reclamar e atrapalhar seu serviço ou mesmo lhe puxar a perna para dentro de uma cova aberta, tudo por causa da falta de uma pai nosso prometido. Não. Isso não podia acontecer.
João do Caixão, nunca havia falhado. Em nem uma sepultura cavada por ele faltava um só palmo, nem meio, para que a sepultura recebesse o caixão. Com ele sempre foram os sete palmos exigidos. Iria enfrentar o sacrifício custasse o que custasse. Pediu a Dona Lenita uma garrafa de café e tomou muitas xícaras para espantar o sono. Ficaria acordado até a hora do anuncio.
Ali, naquela espera angustiante, pensava os motivos pelos quais o Prefeito e o Secretário haviam mudado o horário de anunciar os mortos pela COVID-19. Seu João não tinha votado no Prefeito e nem o apoiava, muito menos depois que ele passou a jogar com a dor das pessoas que perderam seus entes queridos. Seu João, que já havia enterrado muitas na vida, acompanhando de perto a dor da partida, muito mais agora com esta praga terrível que se abateu sobre os moradores de Campos dos Patriotas, havia levado um cem número de patriotenses, não aceitava o que o Prefeito Bacurau andava fazendo e nem entendia onde ele queria chegar com essas atitudes tão mesquinha.
No horário indicado, Seu João, mesmo cansado, abriu o olho, tomou mais uma golada de café, aumentou um pouquinho só o volume do rádio, mas nem precisava, a cidade toda estava ansiosa, esperando por aquele anuncio macabro, quando a voz do secretário de saúde, o tal inspetor de namoro, auxiliar do Bacurau, reverberou pelo cone do auto-falante do rádio, anunciando 7 mortos. Sete mortos?
Seu João deu um pulo da cadeira, o saco se abriu, as pedras caíram, o nosso herói nem anotou o número, gravou na cabeça, e saiu catando pedra por pedra, quando passou de sete e ainda haviam muitas pedras no chão, Seu João começou a suar, subiu pela sua espinha um calafrio, sua cabeça girou, a vista escureceu, sentiu um leve desmaio, quando voltou a si, continuou a catar as pedras. Não acreditava no que estava acontecendo. Naquele dia, havia enterrado 21 conterrâneos vítimas de Covid-19, segundo os atestados de óbito.
Seu João rezou sete pai nossos. Dai por diante, continuou a rezar outros tantos, mas sem aquela fé inquebrantável de antes. Não sabia mais se os mortos do dia mereciam seu fervor. Se a causa mortis fosse outra, não tinha obrigação de rezar por quem não morreu de COVID-19, a família que fizesse sua parte.
Depois daquele dia Seu João do Caixão não foi mais a mesma pessoa. No cemitério não tinha mais o mesmo prazer de guardar as pedrinhas e a noite, em casa, rezar os pai nossos prometidos. Não tinha mais certeza de nada. Mesmo depois que o juiz de Campos dos Patriotas determinou a volta do anuncio as 18 horas, com o número total de mortos, a vida não era mais a mesma. Seu João perdeu o entusiasmo pela sua promessa.
Porém, eis que conversando com os colegas de cemitério, teve uma ideia. Ele mesmo seria o divulgador do mortos. Todos os dias, contava cuidadosamente, observando bem o que vinha escrito na certidão de óbitos, no final do expediente, escrevia em uma lousa preta o apurado e pregava na porta do Campo Santo para toda cidade saber.
Na cidade ninguém mais queria saber dos anúncios oficiais. O quadro do Seu João do Caixão com o números de mortos por dia, passou a ser copiado pela imprensa, confirmado pelo cartório, acompanhado pelo juiz e por todos os líderes religiosos da cidade.
Seu João virou celebridade e o Prefeito Bacurau, com seu amigo inspetor, secretário de saúde de araque, estão para serem expulso de Campo dos Patriotas.